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Cem mil reais

Cem mil reais

Crônica escrita por Wilhan Santin/do portal Bem Contado

No futebol existem os jogadores invisíveis. Eu sou um deles. Minha existência passa despercebida entre um campeonato e outro, com salário baixo e ralação de escravo. Jogo na posição maldita, goleiro, a que menos ganha, a que mais treina e a que mais depende da sorte.

Já estou com 34 anos, sou rodado e vejo o fim da carreira se aproximando. No máximo, tenho mais seis anos. Depois não sei o que vou fazer. Não terminei o segundo grau. Eu estava certo de que iria jogar em time grande, ganhar muito, ficar rico.

Mas até hoje estou patinando em time pequeno. Geralmente time que sobe para a primeira divisão do estadual e cai para a segunda no campeonato seguinte. Daí consigo algum que dispute uma Série D do brasileiro para jogar ou ficar na reserva quando acabam os regionais.

No momento estou nesta equipe de empresário, sem tradição, sem torcida, sem camisa que pese, morando e treinando em município de dez mil habitantes, longe da mulher e dos filhos, e jogando na cidade ao lado, que tem mais de trinta mil pessoas e estádio aceitável.

Cem mil reais para mim é muito dinheiro, dá quase três anos de salário, e virou a minha cabeça quando aquele homenzinho careca apareceu depois do treino de segunda-feira, no meio da rua, eu indo sozinho, a pé, para a casa que o time aluga e divido com outros cinco jogadores, ele me mostrando aquela tantada de notas, uma em cima da outra, e me oferecendo tudo só para eu facilitar um pouquinho, deixar o adversário fazer um gol e vencer o próximo jogo. Era coisa de aposta.

No primeiro impulso, eu quis bater nele, o filho da puta. Estava achando que eu era o quê? Mas desceu um brutamontes do carro que ele havia parado por perto e veio para cima de mim. Tenho um e oitenta e oito, mas ele, o guarda-costas, era maior do que eu. O careca pediu calma e tudo serenou.

Eu falei para ele que não aceitaria, tinha ralado para chegar até ali, não ia jogar a minha carreira no lixo. O baixinho riu debochado. “Que carreira?”, perguntou. Fiquei humilhado. Ele disse que a proposta estava feita e não aceitava negativa. Já considerava tudo certo, era só eu fazer a minha parte e receberia no dia do jogo mesmo, depois que todo mundo fosse embora do estádio. Entrou no carrão e partiu. Cem mil reais.

Fiquei ali, feito bobo. Lembrando da minha trajetória.

Fui destaque no juvenil do time onde comecei. Depois, no sub 20, também joguei bem. Subi para o profissional e fui emprestado, para ganhar rodagem, como dizem. Goleiro precisa de experiência.

Fiquei como segunda opção de times pequenos, ganhando pouco. Às vezes jogava alguma partida oficial. Mas estava tudo bom, porque eu era novo, não estava nem aí. Meu negócio era sair logo do treino e ir atrás das meninas. Queria pegar geral. Eu era solteiro, morava no alojamento, ganhava milão e tava bom demais.

Meus pais continuaram no sítio, em São João do Ivaí, no Paraná, onde nasci. Nunca me pediram nada. Estão indo bem com as lavouras. Meus três irmãos os ajudam e torcem para eu ficar rico e não precisar da minha parte nas terras quando os velhos partirem.

Depois de cada campeonato estadual eu voltava para o time onde comecei e eles me emprestavam de novo. Não tinha espaço para mim. Quando eu fiz 23 anos, disseram que eu estava livre, que não tinha mais contrato, poderia fazer o que bem entendesse.

Na verdade, eu não entendi nada e desisti, porque nunca tinha sido titular absoluto em lugar nenhum, por mais que treinasse. Voltei para o sítio, para a casa dos meus pais, perto dos irmãos, um monte de sobrinhos, com leitão assado no fim de semana e ganhando duzentão por cada partida do campeonato rural. Um fazendeiro me pagava para jogar no time dele. Ali eu brilhava. O homem ainda me dava as chuteiras e as luvas, porque eu não aceitava luva ruim, queria só de nível profissional, e custam caro.

Depois tinha cervejada, a gente ganhando os jogos e o título do ano. Eu nunca gostei de cerveja, pra minha sorte. Não engordei também por vaidade.

A Carina era amiga dos tempos de escola e passou a ir em todos os meus jogos do ruralzão. Começamos a namorar e levamos só seis meses para nos casarmos. Eu já tinha 25. Menina certa, de família de igreja, tinha que ser tudo nos conformes.

Fomos morar no sítio do pai dela, em uma casinha de madeira que o sogro preparou. Virei ajudante dele. O homem me tratava bem, mas não me dava salário, entregava um dinheirinho direto nas mãos da Carina, a cada dez dias. Eu me sentia mal.

No mesmo dia em que a Carina disse que tava grávida, era oito de dezembro, apareceu o Deva, um homem que é empresário de jogadores. Falou que tinha um time para eu jogar, que faria bom contrato, que eu ainda estava em forma e tinha tudo para ir bem, ele só ficaria com 30% dos quatro mil que eu iria ganhar.

A minha mulher ouviu a proposta do Deva, percebeu que eu acabaria aceitando, apesar de pedir uns dias para pensar, e foi chorar na barra da saia da mãe dela. Eu dei uns minutos e fui atrás. Estava me achegando quando ouvi meu sogro entrando no meio da choradeira delas e dizendo. “Futebol é coisa de vagabundo e seu marido é vagabundo. Então vai estar no lugar certo, deixa ele ir.”

Daí eu fui. Não tinha mais clima para ficar ali. Deixei a Carina grávida morando com os pais dela e jurei pra mim mesmo ganhar muito dinheiro para esfregar na cara daquele homem.

Meu salário era mesmo de quatro mil reais, não era mentira. O Deva descontava mil e duzentos da parte dele e só me sobravam dois e oitocentos. Eu mandava dois mil pra minha mulher e me virava com oitocentos, para comprar pasta de dente, cueca, desodorante, essas coisas que o time não dava.

Era o mesmo time de empresários onde estou hoje. Fui muito bem. Chegamos à semifinal do Paranaense. Com isso, o Deva me arrumou um time do Rio Grande do Sul para eu jogar a Série C do Brasileiro. Seis mil de salário, quatro para mim e dois para ele.

Quando o Carlos Augusto Júnior, meu filho, nasceu, em setembro, a gente estava disputando uma fase importante da competição e nem pude ir acompanhar o parto. Só fui ver ele sem ser em retrato de celular em dezembro, quando acabou a competição e o meu contrato.

Voltei para casa de peito estufado, porque eu tinha conseguido mandar dois mil e quinhentos por mês para a minha mulher. Pedi para o Deva arrumar então um time de cidade grande, onde eu pudesse levar ela e o Júnior para a gente viver como família mesmo.

Mas ele só conseguiu no interior do Mato Grosso e a Carina não quis ir. Preferia ficar perto da mãe, que ajudava ela com o nenê. Fiquei puto, mas relevei que ia ser ruim para ela ficar sozinha, numa cidade sem ninguém conhecido quando eu viajasse para os jogos.

Fui de novo sem a minha mulher e sem o meu filho.

Tinha o estadual e o time estava classificado para a Copa do Brasil. A primeira vez em um campeonato de expressão nacional, que paga uma excelente premiação a cada fase que se avança.

Eu estava em minha melhor forma. Fizemos o primeiro confronto da Copa com uma equipe de Alagoas, jogando em nosso estádio. O empate era deles. Vencemos por um a zero, com o maior sofrimento. Joguei muito.

Na segunda fase, enfrentamos um time do interior do Paraná. O sorteio definiu que seria na casa do adversário. Partida única. Em caso de empate, decisão nos pênaltis.

O presidente do clube me chamou e disse que se a gente se classificasse ele me deixava seguir até São João do Ivaí e ficar quatro dias com a minha família.

Dei o sangue naquele jogo. Fiz muitas defesas. O time deles era melhor. Acabou zero a zero. Peguei três pênaltis nas cobranças alternadas. Meu dia de herói. A gente se classificou.

Aproveitei meu prêmio e passei quatro dias maravilhosos com a Carina e o Júnior. Esnobei meu sogro.

No campeonato estadual não estávamos bem, lutando contra o rebaixamento. Nosso foco era a Copa do Brasil. Na terceira fase entraram nos sorteios os times que estavam na Libertadores e nós encontramos com o São Paulo, um dos gigantes do futebol brasileiro.

Era a chance de todos daquele pequeno time do Mato Grosso aparecermos para o Brasil inteiro. Seriam duas partidas. Uma em nosso estádio e outra no gigantesco Morumbi. Alguns jornalistas começaram a falar que o técnico deles aproveitaria para me observar. Estavam precisando de um goleiro reserva.

Foram dias de ansiedade até chegar àquele primeiro jogo. Eu treinei como um louco. Se arrebentasse, poderia ser contratado por um time de primeiríssima linha. Mudaria de vida, traria a minha família para junto de mim.

No dia, cada minuto se passou como se fosse uma hora. Ansiedade, coração disparado. Que coisa ruim. Choveu um dilúvio até perto da hora do jogo. Nós gostamos, quanto pior estivesse o campo, mais dificuldades para eles.

O estádio ficou lotado. Uma festa na cidade.

Quando o juiz apitou o começo da partida, eu tremia, torcendo para vir logo um primeiro chute e eu defender bem, espantando o medo e ganhando toda a confiança. Porque goleiro precisa de confiança. Não demorou. Aos dois minutos, um volante deles arriscou, quase do meio do campo. A bola vinha à meia altura, na minha direção. Deu tempo de eu pensar que seria fácil. Mais ou menos na marca do pênalti ela quicou, ganhou velocidade na grama molhada e eu me atrapalhei como um juvenil. Um frango. Um a zero para eles.

Deu vontade de sumir, de simular uma contusão e pedir para sair. Mas ergui a cabeça e continuei. E os caras percebendo a minha insegurança e chutando de todos os lugares. Para a minha sorte, sem acertar o gol.

Aos 25 minutos, um zagueiro nosso recuou uma bola para mim, o atacante deles veio dar combate, tentei driblar, ele esticou o pé esquerdo, roubou a bola e rolou para a rede. Dois a zero.

Sete minutos depois, o camisa 10 adversário invadiu a área, cara a cara comigo. Pulei em direção à bola. Esperto, ele deu um tapa de lado na redonda e deixou as pernas para eu atingir. Pênalti. O juiz me mostrou o amarelo. Mandei ele enfiar o cartão no cu. Eu nunca fui disso. Sempre fui tranquilo. Mas ali estava fora de mim. E fora do jogo da minha vida. Cartão vermelho. Foram trinta e dois minutos apenas. Um desastre para quem esperava brilhar em cento e oitenta.

O pior era saber que a Carina estava assistindo pela tevê, junto com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos. Perdemos de quatro a zero.

O presidente ficou muito bravo. Falou um monte de besteira, que eu engoli. Ele se esqueceu rápido de tudo o que eu tinha feito para chegarmos até ali. Futebol é assim.

Não fui para o Morumbi. Meus amigos tomaram oito a zero lá. Não joguei mais nenhum jogo naquele ano. Só fiquei na reserva. O contrato terminou e fui dispensado.

Depois disso, todo time que o Deva procurava o pessoal lembrava. “Ah, é aquele goleiro dos frangos contra o São Paulo, o que mandou o juiz enfiar o cartão…”

E começou a via sacra em que estou até hoje, ganhando dois mil em um clube, três mil em outro. Com pouca estrutura para treinar, nenhuma vitrine para aparecer.

A Carina passou a me acompanhar quando joguei em alguns times de cidades um pouco maiores. Já temos também uma menina, a Isabella. Está com três anos. Neste ano ela voltou com as crianças para o sítio dos pais. Foi uma decisão que tomamos juntos, para economizar. Assim eu posso morar no alojamento e a gente não gasta com aluguel. Tô ganhando três mil por mês e mais alguns trocados de premiações por resultados.

Voltar para este time de empresário foi o melhor que consegui nesta temporada. Deixei uma boa impressão da outra vez. Eles trabalham para revelar jovens e negociar com outros mercados. Mas o goleiro é bom que seja alguém mais experiente. E quem passa dos trinta no futebol já é chamado de veterano. É estranho, porque hoje em dia muitos jovens, em outras áreas, nem começam a trabalhar antes dos trinta.

No mesmo dia em que o homenzinho careca me procurou com aquela proposta, minha mulher telefonou. Ela não é de reclamar, mas disse que o dinheiro que eu mando tá pouco para todas as despesas das crianças. Pegou umas faxinas para fazer. Se o pai dela ajuda, depois fica tacando na cara.

E eu passei a ficar só pensando nisso. Cem mil reais.

O jogo que eu deveria entregar valia uma vaga na semifinal. Era a segunda partida do mata-mata. Ganhamos a primeira por um a zero. A gente tinha que empatar ou ganhar para ficar com a vaga entre os quatro melhores.

O adversário tinha muito mais tradição e torcida que o nosso time e faria de tudo para ganhar. Se fosse por um de diferença para eles, a decisão iria para os pênaltis.

Não conversei sobre aquilo com ninguém, nem com a minha mulher. Cem mil reais. Era muita grana. Iria melhorar a situação da minha família. Com uma parte eu compraria uns boizinhos para engordar no pasto do meu pai e vender depois. Com uns dez mil daria para levar as crianças à praia em dezembro, alugando apartamento, com tudo do bom e do melhor. Era um sonho.

Não era difícil entregar o jogo sem ninguém perceber. Mas se alguém descobrisse viraria caso de polícia, poderia dar cadeia. Sem falar na vergonha diante dos meus filhos. Mas eram cem mil reais. Cem-mil-re-ais. Dava para comprar aquela bicicleta de marcha do Júnior e a tal da Barbie que a Isa tinha visto na casa da prima e queria igual. Cem mil reais.

Fui para o jogo ainda sem saber o que fazer, mas torcendo para o time deles vir babando, meter logo uns três ou quatro gols sem eu precisar entregar. O carequinha disse que se a gente perdesse ele me pagaria.

E o desgraçado estava no estádio. Não foi difícil notar ele. Fez questão de se mostrar para mim, lá da arquibancada, fazendo um sinal de positivo quando olhei. Fingi que não vi. Como a gente quase não tem torcida, vieram só algumas centenas de torcedores do outro time e algumas dezenas de simpatizantes nossos. Estádio quase vazio

Nosso técnico armou um ferrolho para garantir o zero a zero. Todo mundo na retranca. E eu pensando o que faria se viesse um chute. Deixar entrar, fingindo uma falha, ou defender? Os cem mil ou a minha honra? Meu pai sempre me disse que o maior tesouro do homem é ser honesto. E eu sempre fui. Mas já tava cansado de viver naquela lama. A carreira acabando e eu sem um centavo guardado.

O jogo foi passando, feio, pegado, nossa defesa aguerrida, todo mundo dando o máximo. Nossa zaga nunca jogou tanto. Os meninos estavam com sangue nos olhos.

Os poucos chutes que chegaram eram tão bisonhos, fraquinhos, que ficaria ridículo eu deixar a bola entrar. E eu nem sabia se queria participar daquele golpe.

O primeiro tempo passou, o segundo se arrastou. O time deles desesperado tentando chegar no nosso gol, o nosso time dando bico para todos os lados. E aquele inferno martelando na minha cabeça, cem mil reais, cem mil reais. O baixinho olhando da arquibancada sempre fixo na minha direção, com um sorrisinho besta nos lábios.

Nosso time simulou contusões, quase todo mundo, menos eu, apesar de o professor fazer vários sinais para eu cair. Se o goleiro tem problemas o juiz é obrigado a parar o jogo. Mas eu queria que tudo acabasse logo e desobedeci.

Chegou perto do final e o quarto árbitro levantou placa de seis minutos de acréscimos. Eu tinha 360 segundos para decidir. E se viesse um chute? Veio, aos 49. Uma tijolada do camisa 11 deles. Nem iria dar tempo de eu reagir. Mas nosso zagueiro abriu o braço e meteu a mão na bola, dentro da pequena área. Pênalti. Vermelho direto para o garoto.

A redonda foi para a cal. E eu sem saber o que fazer. Todos do meu time vieram me abraçar, me dar moral. Você vai pegar, você vai pegar! O nove deles foi para a bola. Alberto. Jogador rodado. Já esteve em grandes times.

Posicionei-me em cima da linha. Olhei para a arquibancada. O bandido sorria e levantou discretamente um pequeno pacote, mostrando para mim.

Você vai pegar, Carlos Augusto. É sua, Carlão. Gritavam do banco. Os torcedores deles berrando gol, gol, gol, gol. E eu pensando nos cem mil reais. O zagueiro que havia sido expulso por fazer a defesa que eu não faria gritou da porta do vestiário. Pega esta para mim, irmão. O carequinha sorrindo cínico. Cem mil reais.

O juiz autorizou. Alberto tomou grande distância. Correu para a bola. Eu olhando fixo para os olhos dele e depois para o pé bom, para ver o lado que ele escolheria. Ele olhando para mim, esperando eu me definir. Fiquei imóvel.

No sítio, a Carina ouvia o jogo que era transmitido por uma emissora de rádio. Agora, com esses aplicativos, ela sempre acompanha os meus jogos, rezando para eu ir bem.

De terço nas mãos, ouviu o narrador de vozeirão grave e dramático. Partiu Alberto, ele não costuma errar. Alberto ou Carlos Augusto. Carlos Augusto ou Alberto. Lá vai o atacante, bateu… Pra foraaa!

Minha mulher me contou depois que vibrou como se eu tivesse ganhado a Copa do Mundo. Eu também.

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